Política nacional de pesca exige gestão voltada ao crescimento sustentável
O recém-lançado relatório Estado Mundial da Pesca e Aquicultura (Sofia, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) projeta que, para manter as taxas atuais de consumo per capita de alimentos de origem aquática, em 2050 – quando a expectativa da população mundial atingir 9,7 bilhões de habitantes –, América Latina e Caribe, por exemplo, precisariam aumentar sua oferta em 13%. As políticas para a pesca são, portanto, centrais para os países costeiros, que devem, por meio da gestão e da ciência, promover a recuperação dos estoques esgotados e reduzir os impactos ao ambiente marinho.
“No Brasil, infelizmente, não temos, hoje, uma gestão pesqueira capaz de garantir um crescimento sustentável e a recuperação de muitos recursos que estão hoje sobrepescados. A nossa legislação nacional é engessada e não incorpora mecanismos de governança modernos. Não temos uma instituição estável para administrar a pesca no país, e toda a estrutura muda a cada quatro anos, ou menos”, analisa o diretor-geral da Oceana, Ademilson Zamboni.
O relatório apontou que a produção mundial de pesca e aquicultura, em 2022, elevou-se a 223,2 milhões de toneladas (4,4% a mais que em 2020), sendo 185,4 milhões de toneladas de frutos do mar (peixes, crustáceos e moluscos) e 37,8 milhões de toneladas de algas. Desse universo, 130,9 milhões de toneladas são provenientes da aquicultura e 92,3 milhões de toneladas da pesca. É a primeira vez em que a aquicultura supera a pesca extrativa em volume de produção.
Os produtores dos “alimentos azuis” geraram um valor recorde de 472 bilhões de dólares, com 61,8 milhões de pessoas empregadas na produção primária, sendo 54% na pesca e 36% na aquicultura. O consumo per capita anual foi estimado em 20,7 kg, o que representa 15% da proteína animal necessária à dieta do ser humano. Em vários países da Ásia e África, os pescados representam mais de 50% da proteína animal consumida, evidenciando sua importância na segurança alimentar.
Apesar dos números em evidente de crescimento, sobretudo na aquicultura, a FAO aponta muitos desafios que os segmentos da pesca e aquicultura devem enfrentar mundialmente, com destaque para as mudanças climáticas, catástrofes naturais cada vez mais frequentes, a escassez de água, perda de biodiversidade, dentre outros. Essas questões globais somam-se a problemas como pesca excessiva, Pesca Ilegal, Não Declarada e Não Regulamentada (IUU, na sigla em inglês) e a poluição de rios e mares, que tornam mais complexa a busca por um planeta sustentável, sem fome nem pobreza.
A FAO recomenda que os países adotem três objetivos prioritários, dentro do projeto chamado Transformação Azul: 1) Crescimento sustentável da aquicultura para satisfazer a crescente procura por alimentos aquáticos; 2) Gestão eficaz das pescarias comerciais e distribuição equitativa das oportunidades de pesca; 3) Cumprimento de acordos comerciais e requerimentos de acesso a mercados, por meio da inovação na cadeia produtiva e implementação de sistemas de gestão que visem combater práticas prejudiciais como a pesca ilegal, não declarada e não reportada.
“Tudo isso faz parte de um pacote que precisa ser feito para garantir que o setor contribua para consolidar seu papel de luta contra a insegurança alimentar, mitigação da pobreza e governança sustentável”, aponta o diretor-geral da FAO, QU Dongyu.
Ações propostas na Transformação Azul são destinadas a apoiar a resiliência nos sistemas alimentares marinhos e garantir que a pesca e a aquicultura cresçam de forma sustentável, especialmente no que diz respeito à contribuição das comunidades que dependem dos recursos extraídos ou produzidos no ambiente aquático.
O Sofia aponta que a pesca artesanal ou de pequena escala contribui com cerca de 40% da captura global de pescados e emprega 90% da força de trabalho no setor da pesca com um todo. No mundo, cerca de 500 milhões de pessoas dependem da pesca artesanal para a sua subsistência, incluindo 53 milhões envolvidas diretamente nessa atividade, sendo 45% mulheres.
O relatório da FAO destaca que as diretrizes voluntárias para garantir a pesca sustentável e de pequena escala foram aprovadas há uma década, mas o papel vital dessa atividade não é suficientemente reconhecido. Por fim, recomenda que os esforços para melhorar a coleta e a análise de dados devem ser reforçados, fundamentais para a elaboração de políticas baseadas em evidências e para a eficácia da gestão pesqueira.
“As análises e projeções da FAO vão ao encontro do que os diversos segmentos do setor pesqueiro almejam, que é uma pesca desenvolvida com base nas melhores evidências científicas, com participação social nas tomadas de decisão e segurança jurídica”, analisa o diretor-científico da Oceana, o oceanógrafo Martin Dias.
“Não há como sair desse quadro em que o país se encontra sem uma nova legislação nacional para a pesca. Temos já uma proposta de minuta de lei, construída coletivamente com diversos atores dessa cadeia produtiva. Precisamos agora é modernizar o marco regulatório da pesca nacional (Lei nº 11.959/2009). Não temos mais condições de seguir em tamanha defasagem”, alerta.
O relatório frisa que um em cada três estoques de peixes explorados no planeta encontra-se abaixo de níveis sustentáveis, e reforça que somente uma gestão eficaz permitirá a recuperação dessas populações, gerando benefícios no longo prazo. As medidas necessárias não são uma novidade: replicar políticas bem-sucedidas, incluindo planos de gestão para as pescarias e limites de captura.
A fração de unidades populacionais marinhas pescadas dentro de níveis biologicamente sustentáveis diminuiu para 62,3% em 2021, 2,3% menor que em 2019. Quando ponderado pelo seu nível de produção, uma estimativa de 76,9% dos desembarques de 2021 foram provenientes de unidades populacionais biologicamente sustentáveis. Isso significa que muitas espécies que geram grandes volumes de pesca estão atualmente em níveis seguros.
No Brasil, a Oceana produz anualmente a Auditoria da Pesca, hoje a principal referência para analisar o desempenho da gestão pesqueira a nível nacional. A última edição do estudo, disponibilizada em 2023, mostrou um avanço significativo no conhecimento sobre os estoques pesqueiros do país, resultado de investimentos em pesquisa aplicada realizado anos antes. Até 2021, o estudo apontava que o governo conhecia a situação biológica de somente 6% dos recursos pesqueiros do país. Hoje este número subiu para algo próximo de 50%, o que significa que os gestores possuem informações consideráveis para a tomada de decisão, como, por exemplo, a adoção de cotas de captura.
“Houve, de fato, um avanço muito significativo na ciência pesqueira nos anos recentes, mas nem tudo está resolvido”, observa Ademilson Zamboni: “Nossos estudos seguem apontando que os governos têm tido dificuldade em aplicar a ciência na gestão. As diversas pesquisas que foram desenvolvidas como uma encomenda da própria autoridade pesqueira até o momento não foram utilizadas para fundamentar novas regras de gestão. São relatórios publicados num site, e somente isso”.